XICA MARIA E OS FERROS DA LIBERTAÇÃO

  “quem ama como a forja, 
com fé é amada.
quem ama firme como o ferro, 
no amor é forjada.
pra matar o inquisidor
é preciso força e magia
e o teu amor, Xica Maria, 
para mim não é fantasia.”
Ponto de Xica Maria 

Xica Maria era uma travesti ferreira que vivia em uma vila esquecida pelos mapas, cercada de montanhas e minerais raros. Desde pequena, ela sentia uma atração quase espiritual pelo ferro bruto. Diziam que ouvia o metal cantar quando o tocava e que podia compreender seus segredos. Aos poucos, aprendeu sozinha a domar o fogo e a moldar o ferro, criando portões, janelas, ferramentas e outros objetos de uma beleza única, que pareciam conter fragmentos da alma de quem os encomendava. Com o tempo, sua fama se espalhou. Diziam que Xica Maria não apenas forjava metais, mas também curava corações. Pessoas viajavam de longe para vê-la trabalhar, fascinadas pelo som rítmico de seu martelo no ferro incandescente e pela dança hipnótica que fazia ao controlar o fogo. Alguns diziam que Xica Maria era mais do que uma artesã: ela era uma Sacerdotisa do Fogo, alguém que enxergava além da matéria e sabia como transmutar a dor em beleza.

Em tempos de guerra em seu povoado, onde todos se tornaram reféns dos constantes ataques da Inquisição e das frequentes disputas por território, Xica começou a forjar amuletos para proteger as pessoas. Esses amuletos eram pequenos portais que abrigavam sonhos, medos e desejos de quem os carregava para que, mesmo em meio ao horror, ninguém se esquecesse dos encantos da vida. As pessoas sabiam que, enquanto usassem o ferro de Xica Maria, estariam protegidas das forças destrutivas do mundo. O que nascia de suas mãos, parecia carregar um fragmento de si mesma. Escudos que defendiam, lanças que apontavam caminhos, facas que rompiam correntes. Ela também criou estátuas e monumentos que reverenciavam histórias de outras travestis e mulheres de sua vila que tiveram vidas apagadas pelo tempo e pela injustiça, fazendo com que suas presenças fossem honradas.


Até que um dia, Xica Maria decidiu criar uma obra sem precedentes: uma fisga gigantesca, uma ferramenta que simbolizava tanto o amor quanto a fantasia. A fisga deveria ser usada para pescar estrelas caídas e entregá-las ao céu, resgatando sonhos perdidos e devolvendo-os ao coração. Ela trabalhava sem pressa, mas com a intensidade de seu propósito. O suor escorria de sua testa, benzendo cada criação com a energia de seu labor, enquanto ela esculpia matéria dura sob o brilho feroz do fogo. Xica se erguia como uma divindade tingida pelas faíscas avermelhadas que saltavam das brasas. As mãos firmes e já calejadas, seguravam o martelo com uma precisão quase sagrada. Cada golpe contra o metal ressoava numa melodia percussiva, cujas células rítmicas ecoavam para além dos muros. O sopro do fole era o próprio vento, alimentando as chamas de um universo que ela mesma criava. Mas durante o processo, algo misterioso aconteceu.

Enquanto trabalhava, a fisga começou a brilhar intensamente, como se estivesse tomando vida, e Xica percebeu que o ferro tinha absorvido mais do que calor. Os fluidos físicos e emocionais que respingaram ali, transmitiram à nova obra sua própria essência, sua alma. Ela não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas continuou até o fim. No instante em que terminou, um calor intenso tomou conta de sua oficina. O ferro derretido, ao invés de escorrer, começou a envolver seu corpo, como uma armadura líquida. Xica Maria não resistiu, pois sentia que aquilo era um chamado. Todo seu corpo se liquefez e, feito pedra magmática, se solidificou.

Quando o fogo finalmente se apagou, a vila encontrou Xica Maria transformada em um imenso e belíssimo monumento de ferro. Era imenso mesmo e cintilava com um brilho de veludo vermelho que tornava inevitável querer tocá-lo. Seu corpo havia se fundido ao metal, mas sua presença podia ser sentida por todos que se aproximavam: uma fusão de sua forma e de sua obra, que pulsava com vida própria. Os que já haviam sido ajudados pelos amuletos metálicos de Xica, se aproximaram logo que a notícia correu e se puseram a entoar cânticos e oferendas à nova encantada.

O monumento de Xica Maria tornou-se um local sagrado. Dizem que aqueles que se ajoelham diante dele e pedem proteção, lhe oferecendo as comidas e bebidas que ela gostava, flores, ferraduras e vistosos tecidos, podem ouvir sua voz como o som do martelo no ferro ou sentir o calor de sua presença aquecendo o ambiente. Outros afirmam que, em noites de lua cheia, sua a figura de emerge do monumento, dançando entre as chamas para guiar as almas perdidas e fortalecer corações fragilizados. Para algumas pessoas, Xica Maria é a protetora. A ancestral que transforma o esquecimento em arte eterna.


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