A DEVOTA DO ANTÍDOTO E A ADAGA DA CRIAÇÃO
"O que é criar senão destruir aquilo que existia antes para dar forma ao novo? Em meus feitiços, há sempre a promessa de uma nova possibilidade, mas também o preço de um mundo que precisa ser deixado para trás.
A criação é um ciclo sem fim, um fluxo de mudanças.
Só os tolos acreditam que o fim é o fim —
o fim é apenas o começo de algo diferente."
Circe em A Odisséia, de Homero
Quando o planeta Venenus se formou, durante uma conjunção cósmica rara, distorceu o tempo e o espaço, fazendo com que a própria linha do destino fosse alterada. O planeta surgiu em forma mutante, como uma criança tentando entender os contornos do seu próprio corpo. Não havia uma ordem definitiva.
Ao longo dos primeiros séculos, a Mãe do Caos observava Venenus e todo o Cosmos Travesti com olhos penetrantes, seus dedos estendendo-se pelo espaço e modelando novas formas de vida para habitar a terra, as águas e os céus. A criação era incessante, mas havia algo em Venenus que não se acomodava com a paz. Algo dentro do planeta gerava uma distorção crescente, uma força incompreensível que espalhava ondas de desequilíbrio, que pareciam buscar um significado que ainda não existia.
Foi nesse momento que a Devota do Antídoto foi criada pela Caos, nascendo sob o véu de uma noite turva de sete luas cheias. Seu nascimento não era mera coincidência. Do ventre revolto de Venenus, modelou-se uma silhueta travesti translúcida, esculpida pela colisão entre luz e sombra. Seu corpo era feito de um tecido inominável, uma tapeçaria de texturas aveludadas, emergida do ritmo da terra convulsionada. Seus olhos eram fendas por onde se derramava o próprio horizonte, e de seus lábios escapava um sussurro que lembrava o estrondo de estrelas se partindo. Enquanto ela se erguia, gotas de um líquido iridescente escorriam de suas mãos, e onde o líquido caía, o solo se refazia em novas formas.
Sua vinda foi a resposta direta ao desequilíbrio do planeta, pois ela trazia em seu ser uma chave capaz de restaurar a harmonia perdida, mesmo que ainda não soubesse onde e como usá-la. No entanto, seu nascimento não trouxe alívio imediato. Ao contrário, seu parto cósmico gerou um novo desequilíbrio. O planeta, instável, se contorceu, e com sua chegada, uma onda de distúrbios percorreu suas terras, perturbando seus habitantes e inaugurando uma nova era de conflitos.
Enquanto a Devota crescia, seu destino se tornava nítido: ela seria capaz de restaurar o equilíbrio, mas apenas se enfrentasse o próprio mal que havia sido gerado por sua chegada. Ela sentia dentro de si os gritos. Os Outros Gritos, como eram chamados, emanavam do núcleo de Venenus, uma força distorcida que nunca deveria ter sido criada, mas que estava presa nos templos submersos do planeta. Eles eram como um canto dolorido e contínuo, uma maldição que nascera junto com o próprio surgimento de Venenus e que, com o tempo, corromperam as vozes e a percepção dos habitantes.
A música da vida se tornou dissonante, os sons que antes eram harmônicos agora se transformavam em ruídos insuportáveis, e a tortura era sentida em todos os seres vivos.
No centro de Venenus, ocultava-se o Duplo Invisível, uma entidade que carregava a maldição do planeta. Sua garganta, selada por uma força inquebrantável, continha a essência do caos. A cada dia, o Duplo Invisível gritava para que seus ecos se espalhassem, mas ninguém, exceto a Devota, poderia ouvir o verdadeiro grito. Conforme expandia seus poderes, o Duplo Invisível tentava minar qualquer chance de equilíbrio, promovendo ataques ao corpo e espírito da Devota.
Certa vez, com o intuito de impedir a construção de mais um muro de proteção energética, o Duplo enviou seis machados cósmicos, que perseguiram a Devota até um dos templos, a encurralando e arrancando seus dois braços translúcidos.
Foi então que a Mãe do Caos fez o Segundo Sacrifício: tirou dois de seus vinte braços e, com unguentos, bálsamos de Antídoto e os Cânticos Sagrados do Veneno, remodelou os membros da Devota, dando-lhes ainda mais força para o que viria. Sabendo que a Devota teria que encarar o transtorno planetário gerado por seu nascimento, forjou para ela uma arma: a Adaga da Criação. Feita de fragmentos da própria terra de Venenus, de metais que apenas aquele planeta poderia fornecer. A lâmina era rústica e crua, como a terra que se transformava sob o caos, e vinha envolta por uma energia silenciosa e densa. Cada corte feito por ela era capaz de apaziguar as turbulências do universo.
A Mãe do Caos entregou a adaga à Devota, com palavras que ecoaram através do tempo:
- Esta lâmina é tua, travesti filha do Caos. Ela é o silêncio que precede a criação e a destruição. Só ela poderá calar os gritos que corrompem a essência de Venenus e, ao fazer isso, restaurar o equilíbrio caótico. Mas lembra-te, cada corte é um sacrifício, e o silêncio é a oferta.
Com a adaga em mãos, ela desceu até o núcleo de Venenus, onde o Duplo Invisível aguardava em silêncio, uma sombra imensa que se estendia pelas cavernas douradas do planeta. O peso do momento estava em cada centelha de energia que vibrava naquele espaço sombrio. O Duplo sabia que sua destruição seria inevitável, pois ela não representava apenas o fim de um ser, mas o fim de um ciclo que já não podia mais ser sustentado. A Devota do Antídoto, com sua Adaga da Criação em mãos, sabia que aquele ato não era apenas sobre vencer um inimigo ou reverter uma maldição. Ela estava confrontando sua própria origem.
Ela sabia, de algum modo, que sua própria existência estava imersa na mesma essência que agora ela destruiria. Venenus, com sua natureza caótica e selvagem, havia gestado não apenas o Duplo Invisível, mas também a Devota. Seu nascimento no coração do planeta fora parte de uma orquestração ancestral, governada por energias invisíveis. O nascimento da Devota fora, talvez, a própria semente da destruição que agora ela carregava, plantada no âmago do caos para restaurar a ordem na grande dança cósmica.
Com um movimento lento, a Adaga da Criação brilhou no ar. Ela sabia o que tinha de ser feito. Quando a lâmina cortou a garganta do Duplo Invisível, houve um som abafado, um rompimento no espaço-tempo, como se o próprio coração de Venenus tivesse parado por um instante. O sangue do Duplo era líquido, dourado e cintilante, refletindo a luz de um sol distante. No momento do impacto, não houve gritos — apenas um silêncio profundo e eterno que se estendeu pelo planeta.
E nesse silêncio, a Devota agora sabia que sua função era reconhecer o caos como parte de sua essência. A própria maldição que havia sido imposta ao planeta e a ela, uma vez cortada, não desapareceria; ela se transformaria. A Adaga da Criação não selava uma solução definitiva, mas possibilitava a transmutação, o surgimento de novas melodias a partir daquelas mesmas forças.
Venenus começou a se acalmar. A música das terras, antes distorcida pela corrupção do Duplo, agora se reorganizava em novas formas, novas melodias que começavam a se desenhar no ar. Suaves, harmônicas, mas não menos intensas. O planeta estava se reconstruindo. Mas, dentro do peito da Devota, o silêncio deixado pela morte do Duplo não era vazio. Era um silêncio fecundo, onde as Sementes do Desejo começavam a germinar.
Ela olhou para o horizonte de Venenus. O equilíbrio caótico havia sido restaurado, mas a jornada ainda seria regada de curvas e espirais. A Adaga da Criação, agora manchada de dourado, parecia pulsar com uma energia nova. Ela havia se tornado a guardiã do ciclo eterno, a protetora daquilo que nascia e morria dentro de si mesma de forma inseparável. O vento suave de Venenus acariciou seu rosto, deixando em seu toque algumas compreensões. Ela compreendeu que o equilíbrio caótico não era um estado fixo, mas uma coreografia desordenada, constante, fluida. Nada naquele universo ficaria parado.
Ela, como Devota do Antídoto, agora se alinhava ao eterno movimento daquele cosmos. Em suas mãos, a Adaga que destrói e cria, que rompe e sela. Uma lembrança viva de que, em cada grito, há uma semente de criação, e que cada silêncio traz a promessa de um novo som. E assim, Venenus continuou a cantar sua música. Uma música onde as notas carregavam as cicatrizes da criação e as fases do eterno renascimento.
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