AS TRÊS ESPELHADAS - PARTE I: A TECELÃ DOS VÉUS
"O universo é um véu tecido por Māyā, e aqueles que ousam ver além da trama encontrarão não um fim, mas infinitos começos. Cada fio é um destino, cada nó, um engano necessário. Pois só se atravessa a ilusão com olhos que não temem o desdobramento da verdade. Quem desafia as dobras do tecido arrisca-se a tocar a essência do mundo – e a perder-se nela." Texto védico, Mitologia Hindu
O terceiro Sol de Venenus ardia no céu lilás, tingindo tudo com sua luz oblíqua.
A Devota repousava silenciosa na Tábua do Centro Solar, sentindo a pressão do ar como se, em meio ao descanso, intuísse que algo oculto desejaria se revelar.
Quando o quarto Sol se abriu, o silêncio foi invadido pelo sussurro oracular das Serpentes Gêmeas, cujas presenças se entrelaçavam ao seu redor. Seus corpos sinuosos se enroscavam na pele da Devota. A voz delas se sobrepunha em melodias arcanas, uma dança de sedução ao anúncio. Elas se enroscavam nos olhos da devota, enquanto diziam, em uníssono:
— O espelho te verá antes que possas vê-lo. O fio se estenderá e se partirá na mesma medida do teu passo. A ilusão será tua verdade, e tua verdade será tua ilusão.
Com a profecia entregue, as Serpentes flutuaram até o quinto Sol, sem despedida. A Devota abriu os olhos e o templo ao seu redor já não estava mais intacto. A realidade desfiava-se em fios luminosos, se entrelaçando como uma tapeçaria efêmera, que se estendia no espaço ao seu redor. Entre as frestas da teia que se formava, ela viu o horizonte se distorcer e, no meio das fumaças prismáticas, suspendeu-se um palácio cristalino, flutuando nas camadas do céu veneniano. As nove Luas do planeta orquestravam um giro suave, e então a Devota aportou no Templo da Trindade Travesti.
Erguida por fios lilases, ela foi conduzida à entrada do Templo e caminhou até o que parecia ser uma ante sala, repleta de imagens que ela só tinha visto em sonhos. De repente, o chão do palácio se tornou um novelo, e os fios lilases agora a envolviam e começavam a subir pela sua pele, formando um casulo de seda etérea. Quando o casulo se desfez, ela se viu diante de presenças inconfundíveis: As Três Espelhadas, sacerdotisas iniciáticas do Reflexo e da Reflexão, responsáveis por toda consciência e continuidade do Cosmos Travesti. Cada uma tecia, estendia e cortava o processo de cumprimento do propósito de toda travesti veneniana. Elas surgiram na plenitude de seu ser, prontas para conduzir a Devota a novos antídotos.
A Criadora de Desejos, feita de fogo líquido e estrelas em combustão, dançava a luxúria sagrada, exalando um magnetismo inquietante. Seu corpo se movia como chamas impacientes, inflamando o desejo e o mistério no espaço ao seu redor.
A Ceifadora de Máscaras tinha uma figura implacável. Sua silhueta era sombria, feita de espelhos quebrados e ventos cortantes, cujas fendas refletiam os múltiplos rostos que ela já desvelara. Seus fragmentos se moviam lentamente em torno de si, carregando ecos de identidades desfeitas.
E à frente, A Tecelã dos Véus: seus olhos caleidoscópicos refletiam formas que desdobravam múltiplas realidades. Seu corpo rendado trançava-se e destrançava-se conforme seus gestos. Cada movimento criava uma vibração profunda de energia que preenchia o espaço. Ao redor dela, as outras duas presenças pareciam aguardar sua vez.
A Tecelã se aproximou e, ao erguer a mão, um espelho triangular se projetou entre elas. O artefato, um holograma místico, vivo em sua essência, se manifestava em três dimensões, como se fosse uma miragem materializada. Com um gesto, ela convidou a Devota:
— Olha. Contempla a fibra de teu destino.
O espelho refletiu seu rosto, mas não como ela o conhecia. Sua imagem se fragmentava, multiplicando-se em mil perspectivas. Os fios lilases, agora tecidos ao seu redor, começaram a se mover, refletindo possibilidades de destinos. Ela viu-se deitada sobre um altar de ametistas, com a voz ressoando em um cântico que desenrolava de sua língua e a transformava num rio. Em outra visão paralela, se tornava uma figura em chamas, com a boca se multiplicando, ocupando quase todo o rosto e os olhos lacrimejando de uma fome sem fim. As cenas eram muitas e se alternavam. Os olhos da Devota saíram de seu rosto e percorreram todas as faces do espelho com um misto de curiosidade e choque sob aquela expansão dimensional que se sucedia frente à ela.
Subitamente, um dos fios subiu por sua espinha e, involuntariamente, abriu sua boca, saindo de dentro dela. A voz da Tecelã ecoou, harmoniosa e dissonante:
— A fenda se desenha no próximo passo. O fio conduz, mas a escolha é tua. Durma.
Sentindo o peso do equilíbrio, a Devota adormeceu. Os fios a envolviam, agora formando uma teia que se tornava parte dela, uma extensão de sua própria essência. Ela então adentrou o Véu do Sonho, um plano deslocado da temporalidade e da espacialidade, preenchido por todas as vozes que criam o Transe do Adorno. O templo girava sobre as luas, e o casulo ninava o ritual de tessitura.
A Tecelã dos Véus inclinou-se sobre a Devota adormecida e, de sua boca, verteu fios dourados e prateados, que se entrelaçavam aos lilases já presos à Iniciada. Seus dedos deslizavam sobre os fios, torcendo, atando, desatando, trançando o destino com a delicadeza de quem molda a própria eternidade. O brilho das linhas oscilava em tons iridescentes, respondendo à respiração do corpo da Devota. Cada fio imantava segredos de um tempo que foi ou que viria. Os fios se moviam luminosamente, deslizando sobre sua pele, incorporando-se a ela. Em seu estado de transe, sentia os toques suaves e elétricos da textura do mundo sendo redesenhada sobre seu corpo. Uma pele nova estava sendo moldada, uma sobrecamada fluida, maleável, sensível às correntes do universo.
As Serpentes Gêmeas a observavam, atentas, como se esperassem pelo próximo movimento. O templo oscilava, girando suavemente, embalado pelo ritmo das luas.
Quando a Devota despertou, estava envolta na Teia da Fortuna, uma veste sagrada que simbolizava o primeiro renascimento iniciático, a possibilidade de caber em qualquer destino que lhe pertencesse. O tecido, antes feito de energia dispersa, agora vestia seu corpo numa segunda pele translúcida. Os fios brilhavam e se moviam como se respirassem. Cada leve brisa movia os tecidos. Ela sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Um reconhecimento profundo, como se aquele manto estivesse tanto por dentro de sua pele, quanto por fora dela.
O templo continuava a girar, incontrolável, e as outras Espelhadas jogavam na sorte quem seria a próxima. A Criadora de Desejos riu, sua chama dançando entre os reflexos do espelho da Ceifadora.
A Tecelã recolheu seu holograma cósmico e costurou-se em uma das Luas de Venenus. E então, a Devota sentiu um puxão sutil em sua nova veste. Um outro chamado. Quando ergueu os olhos, viu o brilho estilhaçado da Ceifadora de Máscaras, esperando por ela...
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