AS TRÊS ESPELHADAS - PARTE II: A CEIFADORA DE MÁSCARAS

 A Ceifadora de Máscaras se movia em estilhaços. Seu corpo se rearranjava a cada passo, como se jamais houvesse tido uma forma definitiva. Sua pele era dura e brilhante como obsidiana, cintilando feito prata líquida sob a luz inexistente. Seus olhos eram buracos de breu, duas cavidades onde nada se refletia. E quando falou, sua voz era um sopro de lâminas:

        — Tua face é tua cela.

A Devota sentiu o corpo travar e, de repente, despencou de si mesma. A queda veio abrupta, um choque de vidro contra vidro. O destino desconhecido era um chão de reflexos fragmentados. Um labirinto de superfícies que não devolviam imagens, apenas devoravam. A Ceifadora inclinou o rosto para observá-la. Depois, cuspiu um punhado de espelhos afiados, que se fincaram ao redor da Devota num círculo ritualístico. Era um portal. Um cárcere aberto. Um ventre de despedida.

A Ceifadora puxou de seu próprio abdômen uma foice translúcida de quartzo rosa. Afetiva e brutal, como ela. A lâmina da foice possuía uma delicadeza enganosa pois era, na verdade, um bisturi de desvelamento. Com um gesto, a Ceifadora encostou a lâmina no rosto da Devota, e o corte foi limpo e inevitável. A primeira máscara caiu, pousando no chão com um baque seco.

A dor foi silenciosa. Não veio como um golpe, mas como uma vertigem, um deslocamento. Como se, ao perder aquele rosto, a Devota perdesse também um tempo inteiro de sua existência. O que fora aquele rosto? Quem o usara? A memória se desfez junto ao corte, tornando-se apenas um eco distante.

       — Cada face caída é um nome que te acorrentava.

Outra máscara foi cortada. E outra. E outra. A Devota tremia sob o peso do alívio e da agonia. Em algum momento ela percebeu que os cortes da foice não feriam, eles desteciam. As máscaras, para além de apenas disfarces, eram barras de uma cela. Cada uma delas continha um pacto antigo, um desejo projetado pelos outros. Ao se desprender delas, a Devota sentiu a pele respirando, como se pela primeira vez.

As vozes das máscaras caídas tentavam chamá-la de volta, chorando sua partida, mas já não havia volta. Sua cabeça era agora um esboço em carne viva, um espaço nu onde a essência ainda não tinha forma definida. A Ceifadora então cuspiu um último espelho, segurando-o diante do rosto da Devota. Não havia imagem ali. Apenas a sombra de algo que ainda se formava. Com as mãos de vidro, a Ceifadora moldou a carne exposta, alisando os sulcos, refazendo a textura translúcida. A Devota não sabia dizer se estava sendo reconstruída ou finalmente revelada.

Então, o silêncio. A foice de quartzo se dissolveu num pó fino e rosado, cobrindo a Devota como um véu de estrelas. As máscaras caídas estalavam no chão e, uma a uma, desfaziam-se em poeira, até que nada restasse. E ali, sob a luz cortante do nada, surgiu a Cabeça Nítida. Um rosto sem ornamentos, sem falsos contornos, sem imposições. A Devota tocou a própria face, sentindo sua nova forma com a ponta dos dedos. Não havia mais sombra entre ela e si mesma.

A Ceifadora de Máscaras sorriu, e sua forma começou a se desmantelar. Seu corpo de espelhos se dissolveu em mil fragmentos, girando ao redor da Devota como uma tempestade de cacos, até que sumiu por completo. E então, a Devota compreendeu. O sacrifício multifacetado não fora um fim, mas uma travessia. Com a Cabeça Nítida, ela daria o próximo passo. E algo, além do véu da realidade, já a esperava.

Algo tremulava além do espelho partido. Uma nova silhueta dançava na neblina de cristal. Uma sombra envolta em véus rubros e púrpuras, tecendo formas invisíveis entre os dedos. Era a Criadora de Desejos, que a esperava em chamas...


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