AS TRÊS ESPELHADAS - PARTE III: A CRIADORA DE DESEJOS

 A Devota do Antídoto havia atravessado o espelho partido. A Cabeça Nítida pulsava em seu crânio como uma constelação vívida, mas algo ainda tremulava na fronteira do irreal. Uma silhueta rubra dançava. Chamas serpenteavam em torno de uma forma que parecia ao mesmo tempo humana e estelar. A Criadora de Desejos esperava por ela.

Seu corpo era feito de fogo líquido e poeira de cometas. O rosto era inconstante, ora visível, ora um turbilhão de brasas e sombras. Seus véus cor púrpura se desfaziam em cinzas e se refaziam no ar. Ela dançava a luxúria sagrada, inflamada por um magnetismo inquietante.

- Sabes o que queres?

 A voz da Criadora reverberava como faíscas no escuro. 

- Sabes o que em ti arde sem nome, sem fôlego, sem medo?

A Devota sentiu as palavras queimando dentro de si. Nunca antes soubera se o que desejava era dela ou das vozes do Cosmos Travesti. Mas agora, com a Cabeça Nítida, poderia enxergar seu desejo sem as máscaras, sem os véus.

A Criadora se aproximou, seus dedos longos traçando brasas invisíveis no ar. 

- Aqui, diante do fogo, teu desejo será provado. O que não resiste ao fogo, nunca foi teu. O que sobrevive, torna-se verbo, carne e chama.

A Devota sentia sua garganta seca, como se sua voz estivesse aprisionada em algum abismo interno. Mas se concentrasse, se ousasse, poderia pronunciar aquilo que nunca ousou dizer.

- Nomeia teu desejo. Nomeia e seja.

Ao ser invadida pelo feitiço iniciático da Criadora, as palavras saíram da boca da Devota como um incêndio sussurrado. No instante em que pronunciou o Desejo Inegável, sua pele se incendiou. A ardência da transfiguração. Faíscas ergueram-se ao redor de seu corpo, moldando-a em lava viva. Tudo o que não pertencia ao seu desejo essencial derreteu, dissolvendo-se como cera ao sol. Então veio a solidificação, um instante de êxtase vulcânico, onde seu corpo se tornou mineral, rachado de veias incandescentes.

E no centro de seu peito, gravado pela língua de fogo, surgiu o Nome Ardente. Um nome que só poderia ser dito em chamas, um nome impronunciável por lábios humanos, mas capaz de redesenhar mundos ao ser entoado.

A Criadora de Desejos observou em silêncio. Então, seu corpo começou a se dissolver, tornando-se fumo e cinza rodopiante. A fumaça girou em espiral, envolvendo a Devota, elevando-a além do espaço-tempo. Quando a névoa dissipou-se, ela estava de volta à Tábua do Centro Solar. Mais de dez mil anos do tempo ocidental haviam se passado. Milhões de sóis eclipsados. O ar ali tinha um peso diferente, como se a poeira de eras esquecidas repousasse sobre sua pele recém-solidificada. As formas ao redor tremulavam entre o antigo e o nunca visto. O solo sob seus pés já não era o mesmo, pulsava como um tambor de pedra viva. O céu, antes familiar, agora cintilava com constelações deslocadas. 


Agora, transmutada no mistério, ela carregava o fogo do verbo que cria e destrói.


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