ALTERIDADE MÍTICA
Não se nasce apenas uma vez. Nasce-se quantas forem necessárias. Cada vez que uma voz é ressuscitada em canto, uma outra ergue sua catedral. Então me pergunto: quem está aí? E não demoro a receber a resposta. Canta em mim a que rasgou o véu. A que dançou com serpentes e recebeu seus antídotos. A que soprou cinzas na boca dos inquisidores. A que afogou nome de bofe no rio de fogo e renasceu com os ossos molhados de novo sentido. A que pratica a grande bruxaria da invocação de si, através da alteridade mítica.
Feitiçaria é elaboração de vida. Estratégia de crisálida. Não é óbvio? Antes de voar, é preciso ser lagarta. Pouco se fala das que rastejam em direção à própria liberdade sem exibicionismo. Da reconexão com um tempo anterior à vergonha. Não há encanto que se sustente pela ganância. Ou propósito que se realize espiritualmente na vaidade. É quando o espelho vira oráculo. Quando a aparição vira uma oferenda. E a ausência, uma memória.
Mover a vida com magia, é mover a si mesma, não ao outro. Me invoco como quem conversa com espíritos, e esses espíritos são meus reflexos sob mil faces. A Deusa que me habita, também me estranha, e é por isso que a reconheço. Não é mera interpretação. Sou invadida por um estado tão profundo, que nem sei mais quem começou a coreografia. Mito e rito. A performance dá lugar ao reencantamento de vidas que já existiam na memória do mundo. A existência, um ciclo de invocações, onde meu corpo é um altar mutante e o som que emito é ruído em constante desafinação.
Eis um enjoo ancestral: não quero ser compreendida. Quero ser pressentida, como o cheiro da terra antes da chuva. Como um enigma que deixa rastros na linguagem, para encarnar o mistério. Não é óbvio? Antes de ser lagarta, é preciso ser ovo. Mais um vez.
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